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domingo, agosto 31, 2003

O MINISTÉRIO PÚBLICO TEM RAZÃO

Desgraçadamente, à medida que se forem desenrolando os complexos actos processuais do caso «Casa Pia», o País enfrentará uma realidade que julgo ser bem mais odiosa do que, por enquanto, se nos afigura.
A simpatia que a opinião pública nutre por alguns dos protagonistas deste caso, faz alimentar a esperança de que tudo não passe de uma gigantesca cabala, de uma conspiração atroz - porque de um conjunto de equívocos já não se pode tratar -, e que a Justiça, a verdadeira, a que está acima das paixões e da cegueira dos homens, há-de deslindar, libertando inocentes, devolvendo-lhes a sua honra e bom nome, repondo desse modo a tranquilidade doméstica à nossa sociedade de bons e pacatos costumes.
No entanto, os terrores mais temíveis são os que se anseiam e não os que se enfrentam. Portugal está a um passo muito curto de ver parte de si a um espelho e a imagem reflectida não ficará aquém do que, no fim de contas, todos estamos à espera.

Num contexto de dramatização, com um ambiente mediático sem ética nem lei, inquinado pelas mais rasteiras estratégias comerciais e capaz de tudo, agindo dentro de um quadro legal medíocre e academicista, vai iniciar-se a audição das trinta e duas testemunhas deste primeiro processo, num sistema de video-conferência em tempo real, sem, no entanto se proporcionar o confronto físico entre arguidos e testemunhas.
E não podia ser de outra maneira. Desse número, apenas três são de maioridade. Os mais novos têm doze anos. Todos irão relatar eventuais factos ocorridos há já algum tempo, quando eram crianças.
Só quem nunca entrou numa sala de audiências pode supor que é fácil enfrentar um tribunal, seja em que posição processual se estiver. Pior ainda é quando, para além do tribunal, se está a falar para um País inteiro, que escutará minuciosamente tudo o que for dito naquela sala. Não se pode imaginar o que possa ser uma criança de doze, treze, catorze ou mais anos de idade, descrever, com inevitáveis pormenores de sadismo e crueldade, as práticas pedófilas de que foi vítima. Fazê-lo na presença dos adultos que eventualmente as cometeram. Ser confrontado com olhares, esgares, exclamações, indignações dos arguidos. E manter a serenidade e presença de espirito de que tanto precisará para contar a verdade.

O Ministério Público teve, desde o primeiro momento, razão ao pedir que assim fossem ouvidas as crianças e jovens em causa. E portou-se com inequívoca dignidade ao deixar subentender que, se o juiz persistisse no confronto físico, preferia sacrificar a sua credibilidade neste processo suspendendo as audições, a sacrificar as crianças. O mesmo já não sucedeu com o juiz Rui Teixeira que, sugestionado pela pressão da opinião pública ávida de espectáculo, cedeu, num primeiro instante, à solução mais fácil do confronto directo, recuando já apenas no final. Emendou, porém, a mão a tempo.
Quanto aos arguidos, em relação aos quais é obrigatório presumir a sua inocência até ao fim do julgamento, em nada vêem diminuídos os seus direitos a partir do momento em que a identidade das crianças não é, como não será, ocultada. Saberão, por isso, quem os acusa e, obviamente, do que são acusados. Os seus advogados poderão inquiri-las, a fim de prepararem e exercerem o contraditório. Só não as terão perante si. É apenas disto que se trata e que tanta tinta tem feito correr.

Outra questão é a forma acidentada como este processo tem decorrido, com os sucessivos atropelos, pelo menos na aparência, de princípios fundamentais de um Estado de Direito. Daqui não é legítimo supor a existência de uma sinistra conspiração para culpabilizar os arguidos, utilizando mais de trinta crianças, e de um sem número de magistrados, educadores e polícias. Quem dera que fosse assim tão simples, porque, uma conspiração que envolvesse tanta gente acabaria, mais cedo ou mais tarde, por vir à tona da água.
Devemos, talvez, procurar no sistema penal vigente que faz de um juiz de instrução uma espécie de assistente estagiário de uma universidade, as razões para essas ocorrências. O juiz Rui Teixeira tem trinta e três anos. Está no início da sua carreira. A sua formação como magistrado não estará, seguramente, consolidada. É, por isso, natural que se atrapalhe, contradiga, cometa erros sobre erros e não domine a lei, a doutrina e a jurisprudência como seria conveniente num caso destes. Num País responsável, um processo desta complexidade jurídica e humana não lhe poderia ser confiado em fase alguma, tão-pouco na instrução.
Não se pode, por isso, confundir aqui as imperfeições deste processo, com as deficiências da nossa ordem jurídica. Nem avaliar os excessos do nosso processo penal – os limites abusivos da prisão preventiva, as escutas telefónicas, o segredo de justiça, a posição de inferioridade da defesa perante a acusação, etc. –por este processo em concreto. Até porque, se vier a provar-se que a acusação tinha razão, poderão ser postas em causa as reformas que urge fazer. E, para provar as deficiências e abusos da nossa lei, estão as prisões e os tribunais cheios de casos exemplares.

Seria bom que o Estado português fizesse justiça às crianças que teve à sua guarda e que não soube proteger. A quem, muitas delas, os factos em que se viram envolvidas destruíram irremediavelmente a vida, provocando traumas irreversíveis, ou lançando-as na prostituição, na droga ou no crime. Falamos de crianças expostas a violência sexual de adultos, perante a indiferença do Estado. É altura de termos isso presente e de as deixarmos falar, pela primeira vez, livremente. Infelizmente, o que iremos escutar irá envergonhar-nos a todos.
AGRADECIMENTOS

Ao Mata-Mouros e à Causa Liberal, pelas palavras que nos dirigiram a propósito da suspensão do Cataláxia. Tivemo-las em conta.
Foram, contudo, os únicos, num universo de centenas de blogues.
Um liberal deve saber ler os sinais dos mercados onde intervém.

quinta-feira, agosto 28, 2003

O QUE VERDADEIRAMENTE IMPORTA

Por alguma obscura razão, escapara-me aquele que julgo ter sido o último filme do mítico Nigel Hawthorne, «O CASO WINSLOW, transmitido na sessão da noite de hoje, na RTP.

quarta-feira, agosto 27, 2003

A RETER

Duas notícias dos últimos dias: a duplicação do endividamento da administração pública portuguesa, entre Janeiro e Junho de 2003, e a proposta de medidas penais draconianas para os patrões que recorram ao lay-off, pela parte do Ministro Bagão Félix.

A primeira surpreende-nos, porque decorre de um aumento do financiamento líquido a esse sector do Estado, por um Governo que tinha prometido exactamente o contrário. A situação, numa óptica liberal, só poderia ter explicação se esse financiamento fosse extraordinário e destinado a pagar indemnizações por despedimento e reformas antecipadas, para a redução dos efectivos e emagrecimento do funcionalismo. Ora, não consta que nada disso tenha sucedido, mantendo-se a nossa administração pública sobredimensionada e incompetente.

Sobre as penas de prisão que o Ministro Bagão Félix quer aplicar aos empresários que façam findar a actividade das suas empresas «à margem da lei», há algumas dúvidas que nos perseguem, desde há muito, sobre este tema. Concretamente, se admitirmos que os sócios de uma empresa são seus proprietários porque a criaram ou a adquiriram legitimamente, não consigo entender porque lhe hão-de pôr fim, a não ser que ela seja inviável. E essa inviabilidade pode decorrer de muitas coisas, tão variadas como uma recessão de mercado, a falta de pagamento dos devedores, a impossibilidade de cumprir as pesadas obrigações fiscais, repetidas paralisações dos trabalhadores, mesmo até, da inépcia dos seus gestores. Mas, no que já não acredito, é que alguém no pleno uso das suas faculdades mentais queira cessar uma actividade lucrativa de que é proprietário. Assim, eu recomendaria ao Ministro Bagão, cada vez mais o Diácono Remédios do Dr. Portas e deste Governo, que se satisfizesse com a tragédia que constitui para um empresário o encerramento da sua empresa, em vez de lhe que querer enfiar grilhões nos tornozelos, quiçá condená-lo às galés.

Dois bons temas sobre os quais o auto-proclamado paladino do liberalismo nacional e da classe média portuguesa, o Dr. Manuel Monteiro, líder do PND, estará já a preparar-se para intervir.
INTERREGNO

Após uma paragem forçada de quatro dias, retomamos a nossa actividade. Não sabemos, ainda, se por muito ou pouco tempo.
Na verdade, aliada a razões de natureza profissional, está uma sensação crescente da inutilidade da blogosfera, na medida em que esta nos parece ser, cada vez mais, uma actividade em circuito relativamente fechado, isto é, que se alimenta de algumas poucas dúzias de pessoas - todas, ou quase, extraordinariamente simpáticas - e pouco mais do que isso. Por outro lado, o fascínio encantatório que alguns blogues exercem sobre quase todos os outros, nomeadamente o inevitável e narcotizante Abrupto, leva-nos à enjoativa sensação que a maior parte dos bloguers almeja um comentário, uma referência, uma nota que seja do Dr. Pacheco Pereira, tratado com uma falsa informalidade por JPP.
Nestes termos, começo a duvidar que a blogosfera seja o espaço de liberdade e criatividade individual que julgava e esteja transformada numa espécie de sistema solar com um astro-rei que é o Dr. Pacheco Pereira ( o JPP), em torno do qual gravitam planetas maiores e menores.

Por isso, os próximos dias serão de actividade reduzida e cautelosa. Comentaremos circunstâncialmente uma ou outra ocorrência que se nos afigure importante, editaremos as duas prometidas 'postas' sobre Liberalismo e Catolicismo, e uma perpectiva liberal da comunidade internacional, em especial, da União Europeia e logo veremos se encerramos ou não a nossa "emissão".

Não queremos, com isto, cometer qualquer deselegância para quem quer que seja, muito menos às pessoas que nos tem lido, comentado e ajudado, a quem desejamos aqui agradecer publicamente. Nem esquecemos que já encontrámos na blogosfera textos de imensa qualidade, com os quais já aprendemos bastante e a que temos, de resto, feito as devidas referências.

sexta-feira, agosto 22, 2003

VERDADEIRO SERVIÇO PÚBLICO

Prestado pela sempre lúcida Charlotte, da Bomba-Inteligente, que nos faculta um imperdível link sobre Beyoncé. Letra e tema bem escolhidos. Parabéns.
Só para apreciadores.
EM DEFESA DA CLASSE MÉDIA

O INDEPENDENTE noticia hoje que a Câmara Municipal de Lisboa estroncou milhões de euros numa compra especulativa de terrenos do Benfica, forma evidente de subvencionar indirectamente aquele clube de Lisboa. Através de uma empresa cujo capital social lhe pertence por inteiro - a EPUL - Empresa Pública de Urbanização de Lisboa -, a CML comprometeu-se ainda a construir 200 fogos ao Benfica e outros tantos ao Sporting, que serão vendidos em condições especialmente benéficas aos sócios daqueles clubes.
Nesta mesma semana, o DN noticiava outro negócio que envolve milhões de euros entre o Estado e a Caixa Geral de Depósitos, de que aqui demos conta. No essencial, trata-se de uma operação de concessão de um empréstimo para equilibrar o orçamento de 2003, em troca de garantias imobiliárias que, obviamente, o credor bancário em circunstância alguma accionará.
Como é evidente, estas operações delapidarão milhões e milhões de euros, sendo a sua origem, naturalmente, as receitas dos contribuintes e os lucros de um banco do Estado. Escusado será dizer, que os mesmos contribuintes em nada beneficiarão de tais operações, para as quais, de resto, não deram qualquer autorização.

Nada disto nos surpreende, visto conhecermos razoavelmente o país em que vivemos.
Como não nos admira que os dois partidos mais à direita do sistema - o PSD e o CDS - se não manifestem contra estes estupros financeiros, já que, estando na CML e no Governo, são os primeiros responsáveis pelos mesmos.
O PS, socialista como se proclama, deve rejubilar por mais esta exemplar demonstração neo-keynesiana de redistribuição de rendimentos, aos sócios do Benfica e do Sporting, num caso, ao Governo português, no outro.
Mas já não podemos deixar de estranhar que o novel partido do Dr. Monteiro - o PND - que surgiu na cena política portuguesa para afirmar um programa liberal, anti-estatizante e defender a classe média portuguesa dos atropelos e falcatruas legais de que é vítima, nada tenha dito. Ou será que, neste momento, as preocupações estão centradas nas eleições para Bruxelas?
«O FIM DOS BARÕES»

À atenção do Opções-Inadiáveis, o artigo de Adelino Cunha publicado hoje n'«O Independente», sobre as cisões ocorridas no PSD, em particular, aquela que é evocada pelo nome do blogue (a «Segunda Cisão»).

quarta-feira, agosto 20, 2003

VALHA-NOS DEUS!

O Dr. Paulo C. Rangel que, para quem não conheça, é uma espécie de António Lobo Xavier dos pequeninos, escreveu hoje, no Público, um vertiginoso artigo sobre Agustina Bessa-Luí­s, ao qual deu o sibilante e sibilino nome de «Agosto com Agustina ou o lugar da igualdade».

Igualdade a que o autor recorre ao longo do extenso texto, desde logo, tratando a augusta Senhora, com idade para ser sua avó, por «Agustina». Que, aliás, confessa não conhecer de lado nenhum, a não ser pelo facto de ser «a mulher de Alberto Luí­s, um homem do Renascimento», também com idade para ser, pelo menos, seu avô, e com quem terá seguramente travado conhecimento no seu curso de estágio na Ordem dos Advogados.
Agustina, a própria, de quem tem a humildade de reconhecer não ter lido quase nada, a não ser, «por ofício familiar e devoção sá-carneirista» (?), "Os Meninos de Oiro" e ter procedido a uma «leitura vaga» (um novo conceito de leitura) do romance "A Sibila", «por entre os muros do Colégio dos Carvalhos».

Ora, nem a leitura "emparedada" de dois romances de Agustina, nem o desconhecimento pessoal da ví­tima dos seus comentários, o inibe de dissertar longamente sobre, digamos, o desconhecido.
Porquê? Porque, responde-nos Paulo C., «tudo impressiona em Agustina. Mas o que mais impressiona nesse "tudo" é a sua "literatura oracular". (...) Cada par de páginas é um templo de Delfos, em que há um oráculo a merecer interpretação e pronúncia».
Foi por isso, e a conselho do «mestre e amigo, António Lobo Xavier», que Paulo C. leu "O Princí­pio da Incerteza", última obra de Agustina, que, segundo Paulo C., «causa espanto - da cepa do que se abriga nos primórdios da filosofia - a ciência da natureza humana, das suas entranhas e das suas profundezas». E remata, lapidar, sobre o teor da obra: «não é um tríptico de romances, um tratado de filosofia, um ensaio de polí­tica, um dicionário de religião, um curso de psicanálise, um guia turí­stico, uma enciclopédia do amor ou, simplesmente, uma recensão do "Kamasutra". É tudo isso, na medida justa, e, mais do que isso, em dose proporcionada».
Bom, perante isto, palavras para quê? De tratado de filosofia a guia turístico, vale tudo. Agora, remeter a Senhora para o "Kamasutra", parece-nos um pouco excessivo. Tanta familiaridade com a Agustina, se eu fosse o Alberto Luí­s, desagradava-me. Às vezes, falta a pachorra, mesmo quando se é «um mecenas e princí­pe» do Renascimento, na sugestiva qualificação do vetusto consorte.

Que Deus, Nosso Senhor, na Sua infinita generosidade, nos valha e dê paciência!
O MUNDO É UM SÍTIO PERIGOSO

Se os líderes do mundo livre se têm unido a George W. Bush quando ele, no seguimento do 11 de Setembro, anunciou o combate ao terrorismo como a tarefa prioritária do seu governo, talvez não tivessemos assistido aos dois atentados do dia de ontem, em Bagdad e Jerusalém, que vitimaram dezenas das pessoas, entre as quais Sérgio Vieira de Mello.
É evidente que a fragilidade da campanha anglo-americana no Iraque se deve à escassez de apoio internacional e à consciência da legitimidade reduzida da coligação, tendo em vista os princípios de um direito internacional público de cariz ocidental e civilizado.
Apercebendo-se dessa fragilidade, os grupos terroristas islâmicos e as lideranças dos Estados mais ortodoxos (cuja fronteira com o terrorismo é, quase sempre, pouco nítida) exploram-na até à exaustão e estabelecem diplomacias directas e paralelas com alguns dirigentes do mundo ocidental, em troca de vantagens comerciais e posições privilegiadas no mundo do petróleo.

Sucede, como George W. Bush não se cansa de pregar, que o mundo é um sítio muito perigoso. O fim do bloco soviético não o pacificou. Pelo contrário, desordenou largas zonas continentais que, sob a alçada do Império Vermelho, se mantinham ordeiras e disciplinadas. Hoje, entregues a si mesmos, possuidores, alguns deles, de incomensuráveis riquezas e dirigidos por tiranos, esses países são, de facto, uma ameaça para a comunidade internacional. Utilizando, directa ou indirectamente, as hordas terroristas, vão, por enquanto, martirizando os Estados Unidos da América e os seus interesses, com um evidente gozo de algumas lideranças ocidentais, que julgam ver assim confirmadas as suas profecias sobre a actuação americana no Iraque. São, como lhes chamava Lenine, os «idiotas úteis», rapidamente defenestrados quando perdem a sua utilidade.
Foi desgraçadamente, o que sucedeu ontem com a sede da delegação da ONU em Bagdad. A organização internacional que mais reservas tinha sobre a intervenção da coligação foi dizimada sem dó nem piedade.

É tempo, e esperemos que ainda o haja, dos líderes do mundo livre se entenderem quanto à geopolítica do mundo pós-soviético. Ou aceitam um domínio inequívoco dos EUA, de quem serão obviamente influentes aliados, ou encontram alternativas. Estas, como é evidentíssimo, não existem. Nem, sequer na União Europeia, onde alguns interesses comuns são fortíssimos, os Estado-membros se conseguem entender sobre uma política externa de segurança. O que não é possível é continuar esta duplicidade em relação aos EUA, nem deixar por decidir por muito mais tempo se o problema do Médio Oriente é ou não para resolver, hajam ou não "armas de destruição" maciça, um problema menor tendo em vista a tragédia diária daquelas populações.

Quanto a Sérgio Vieira de Mello, querendo aqui evitar as ladaínhas do costume, há que dizer que morreu em exercício de funções. Que sabia arriscadas e perigosas. Era, portanto, um homem de coragem e, quanto mais não fosse, só por isso merece o nosso respeito e a nossa gratidão. Que sirva de exemplo a quem tem o poder de decidir, que os faça entender que a vida é, na realidade, efémera e passageira, e que temos a obrigação de a melhorar, enquanto por cá andamos. E que Deus, caso exista, o receba na Sua infinita bondade.

terça-feira, agosto 19, 2003

CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS

O Estado português prepara-se para vender alguns imóveis seus à Caixa Geral de Depósitos, de forma a poder equilibrar o orçamento de 2003, informa hoje o DN. Os edifícios em causa pertencem ao Estado e neles funcionam serviços da administração pública central que não podem ser removidos para outros locais.

Tudo isto estaria certo, não fora a Caixa Geral de Depósitos um banco do Estado, que recebe e gere milhões de contos dos seus depositantes e das suas participações noutras sociedades. Se o Estado português recorresse à banca privada, portuguesa ou estrangeira, provavelmente esta operação não se realizaria. De facto, só um banco governado por loucos ou politicamente comprometido, poderia emprestar milhões a troco de património que sabe não poder executar, em caso de incumprimento da dívida.

A nosso ver, esta operação, para além de uma maquilhagem às contas do Estado, que julgávamos ter terminado com o fim do governo socialista, é ilegal: trata-se de um “negócio consigo mesmo”, em circunstâncias que defraudam as regras da boa concorrência, utilizando de forma pouco escrupulosa dinheiros públicos e privados.

Eu sei bem o que é para um empresário tentar ir buscar dinheiro à Caixa Geral de Depósitos, oferecendo imóveis (livres e desonerados, ao contrário destes) em garantia. É uma verdadeira missão impossível, a não ser que a empresa que recorra ao crédito esteja a nadar em dinheiro e os seus gestores ofereçam, além de garantias imobiliárias, garantias pessoais. Nada disto, seguramente aconteceu ou acontecerá neste caso: nem o Estado tem uma boa situação financeira, nem a Dra. Ferreira Leite há-de oferecer a sua casa de férias em garantia do empréstimo.

Percebem, agora, porque é que a Caixa Geral de Depósitos «não pode» ser privatizada?

segunda-feira, agosto 18, 2003

COM GRAÇA

O Triunfo dos Burros. Está no início, mas promete. Imperdível a "génese biblíca" da "burro-cosmologia" professada pelo blogue.
VÓMITO

Despejado hoje no jornal Público, por um sacripanta que responde ao nome de Major Tomé, sobre Maggiolo Gouveia, morto há vinte e oito anos.
O antigo oficial de Spínola e empenhado fascista não tem (nunca teve) vergonha na cara. É pena que não haja quem lhe aplique umas boas bengaladas queirosianas. Talvez se ele insultasse os vivos, em vez de o fazer aos mortos, alguém lhe desse esse pedagógico tratamento.
«BACK TO BASICS»

Ou, em português corrente, voltemos ao que interessa.

Eu explico: um bocadinho saturados dos temas, invariavelmente políticos, que temos abordado com as nossas sensatas e pausadas opiniões, eis que Cataláxia regressa ao bom espírito conservador do «back to basics».

Falamos da leitura da imprensa que verdadeiramente interessa, onde julgamos sobressair essa notável revista centenária que é a «Nova Gente». A desta semana, que mantém a tradição de editar uma bela «pin-up» na página do sumário, está particularmente bem recheada. Concretizemos:
☺ Nas primeiras páginas, dedicadas às «breves»: a notícia de um novo medicamento para a impotência sexual masculina («disfunção eréctil», segundo os especialistas), anunciado por um Paul Newman nostálgico; a careca de Agassi irrompendo de uma “t-shirt” da Nike; declarações da vistosa Ana Afonso («Sou uma loira burra»); uma bela fotografia com três elegantes nipónicas a aplicar “sprays” de meias de vidro nas respectivas seis pernas, uma revolucionária descoberta na elegância feminina.
☺ Uma entrevista com a juvenil Paula Marcelo, casada com o grande Camilo de Oliveira, que nos informa que «ter filhos foi um sonho que não se concretizou». Porquê, Paula? Porquê?
☺ Em foco, Paula Bobone anuncia o seu quarto livro – Socialíssimo -, cujo sucesso é uma antevisão desnecessária. Bobone, vestidinha a preceito (embora o crucifixo que ostenta ao peito esteja um pouco descentrado, responsabilidade de alguma mão passageira) anuncia a sua adesão ao liberalismo clássico, ao aceitar a asserção do entrevistador de que «as regras acabam por quebrar a espontaneidade».
☺ As páginas dedicadas à monarquia constitucional, com três importantes peças: um «casamento de conto de fadas» de duas figuretas com nomes impronunciáveis, na qual estiveram presentes os nossos dignos representantes, os sorridentes duques de Bragança; a notícia do envolvimento amoroso do filho mais velho de Carolina do Mónaco com uma actriz de filmes pornográficos (onde é que o rapaz foi apanhar estas tendências); a mudança de Stephanie do palácio de família, para uma roulotte, com o seu novo namorado, um palhaço do circo Adans Peres. Teria sido uma barrigada de riso, não fora a fúria gorilácea do príncipe Rainier, por lhe terem estacionado a roulotte nas imediações do casino de que é gerente.
☺ Em matéria de assuntos do coração, tomámos conhecimento do namoro de Rita Blanco e Nicolau Breyner, «que vivem, com discrição, dias de felicidade»; que Sofia Aparício tem um namorado ainda mais careca do que ela já foi; e que Bibá Pitta recebeu do seu lustroso marido «um anel de sonho», por ter feito 38 primaveras (contadas a partir da comunhão solene). A reportagem fotográfica desta festa de aniversário é deslumbrante: Pitta sopra na vela do bolo, Pitta oscula o marido, Pitta estupefaz-se com o presente, Pitta deixa-se fotografar com um chapéu de “rodeo” azul celeste com folhos brancos, agarrada ao lustroso e apaixonado marido.
☺ Mas, o grande documento deste número é, sem dúvida alguma, a entrevista a Isabel Angelino. Aqui, o assunto fica, efectivamente, mais sério. É que Isabel Angelino, que há meia dúzia de anos era insuportável, transformou-se numa bela mulher. Terá sido do divórcio? Os clássicos afirmam que o desgosto faz bem às mulheres. Talvez. Bom, de qualquer maneira, há que reter as seguintes declarações da entrevistada: «Era incapaz de ser mãe sozinha» e «Admito adoptar uma criança». Ai, Isabel, como compreendemos a sua aversão à procriação “in vitro”. E como admiramos os seus nobres sentimentos em relação aos desvalidos da sorte. A propósito: se é verdade que todos os homens são crianças, conheço um que não se importava de ser adoptado.

EXCELENTES

O Liberdade-de-Expressão, com três belísimas 'postas': «Mercado de Energia Eléctrica», «A Péssima Imagem dos Políticos é da Responsabilidade dos Próprios» e «Se, em Portugal, os Incendiários Fossem Equiparados aos Terroristas». Esta última, um primor, sobretudo pela ironia manifesta nos «links» inseridos.
O Mata-Mouros, pelas 'postas' de política internacional editadas nos últimos dias, nomeadamente sobre a Libéria e Israel («O 'Muro' em Israel). Sobressai o novo aspecto gráfico do blogue, cheio de imagens e com alguns «cartoons» deliciosos, retirados da imprensa estrangeira.
O Contra-a-Corrente com duas boas 'postas' sobre a intervenção do Estado e o valor da lei numa óptica liberal.
O Faccioso, blogue que desconhecia, mas que julgo, pelo que li, que se irá afirmar na nossa blogosfera.

domingo, agosto 17, 2003

REFUTAÇÃO

Da 'posta' da Desesperada Esperança, «Contra o Federalismo Europeu», que transcreve uma citação de Mises de 1927:

«(...) o federalismo é o único meio, capaz de fazer uma realidade do ideal de um direito internacional (...).
(...) Exercido com sabedoria, o princípio federativo pode, na verdade, vir a ser o melhor instrumento para solucionar alguns dos mais graves problemas do mundo. (...) Creio que estas considerações continuam válidas, e poder-se-ia conseguir entre, por exemplo, o Império Britânico, as nações da Europa ocidental e, talvez, os Estados Unidos, um grau de cooperação que não será possível à escala mundial. A associação internacional relativamente reduzida que uma União Federal constitui, talvez só venha a ser realizável, de início, dentro dos limites de uma região, como seja a Europa Ocidental, mas será possível alargá-la gradualmente a outras regiões».


F. A. von Hayek, O Caminho Para a Servidão, 1943
À ATENÇÂO DA BLOGUITICA NACIONAL

«(...) um brilhante político do século XIX, em exercício de funções no século XX português».

sábado, agosto 16, 2003

A DESCOLONIZAÇÃO EXEMPLAR

Eu tinha 11 anos quando se deu o 25 de Abril. Nunca vivi no, então, chamado Ultramar português e também não sinto qualquer nostalgia do Império.
De resto, como liberal que sou e me sinto desde há muito, tenho enorme desconfiança, para não dizer aversão, a Estados centralizadores que, por maioria de razão, se estende a Estados sob a forma imperial, por mais autónomas que possam ser as suas parcelas. Não obstante, sei também que os impérios tiveram a sua parte na História do Mundo. Nós fizemos parte dessa História e, infelizmente, não soubemos ler a tempo e horas os sinais que ela nos deu, nomeadamente, o que sucedera aos impérios francês e inglês, e o que nos aconteceu na Índia.
Culpa de quem? Inevitavelmente do Doutor Oliveira Salazar, um brilhante político da segunda metade do século XIX, em exercício de funções no século XX português. Não tenho dúvida de que se António de Oliveira Salazar tem vivido cem anos atrás, não teria hoje, sobre si, as reservas da nossa História. Oliveira Salazar achava que era responsabilidade sua manter Portugal íntegro «do Minho a Timor», não quis ouvir quem o tentou aconselhar a descolonizar a tempo e horas (nomeadamente, os americanos, de quem, na “boa” tradição chauvinista europeia, desconfiava serem um país de gente menor) e, irresponsavelmente, julgou ser possível deixar Portugal à margem da geopolítica bipolar que marcou quase toda a segunda metade do século.
Já o mesmo não diria de Marcello Caetano, ao contrário do que afirma a Bloguitica Nacional, a pretexto de quem é escrita esta ‘posta’. Nem o regime político de Marcello era igual ao de Salazar, nem se aproximavam as perspectivas que tinham, um e outro, quanto ao futuro do Ultramar.
Marcello teve as dificuldades que todos os herdeiros de regimes autocráticos conhecem. Com a agravante de ter o problema da guerra colonial para resolver, com a emergência que a sociedade portuguesa lhe impôs. Situado entre integracionaistas, federalistas, autonomistas e independentistas, Marcello Caetano não foi apoiado verdadeiramente por ninguém. Tentou o impossível: liberalizar um País na metrópole, com uma guerra no Ultramar. Aos partidários da democracia não concedeu o princípio da auto-determinação das colónias; aos defensores do império surpreendeu negativamente com as liberdades cívicas e políticas que efectivamente concedeu. Se se virava para o Ultramar, logo a facção liberal da ANP, de Sá Carneiro, Mota Amaral, Pinto Leite, se agitava; se falava em autonomia progressiva das colónias, imediatamente o Chefe de Estado, o venerando Américo Thomaz, e os pretorianos do regime, com Kaúlza e Franco Nogueira de atalaia, o chamavam à liça.

Contudo, o que é inegável, é que, em 25 de Abril de 1974, apesar da guerra colonial estar perdida na metrópole, ela estava, com excepção da Guiné, onde Spínola redondamente falhara, ganha no campo de batalha. Pelo menos, temporariamente ganha. Obviamente, que teria sido uma questão de tempo, como foi, para se reacenderem com intensidade redobrada as acções dos movimentos de libertação. Só que – e aí é que entra a responsabilidade histórica de quem fez o 25 de Abril – o tempo para negociar a paz existia. Fora ganho, bem ou mal, pelo nosso exército. Por isso, foi inadmissível e criminosa a atitude de entregar, sem excepção, aos movimentos pró-soviéticos as colónias portuguesas, quando existiam outros intervenientes e interesses no processo. O saldo aterrador de milhões de mortos, países, economias e sociedades destruídas, deu razão a Marcello Caetano. Como bem escreveu Vasco Pulido Valente, «Marcello Caetano não se demitiu da responsabilidade de “homem europeu” em África e os resultados da demissão dos outros não o diminuem» (VPV, Marcello Caetano – As Desventuras da Razão, Gótica, Lisboa, 2002).
Eu conheci, no fim da vida, o General António de Spínola. Vi-o muitas vezes, em Julho e em Agosto, no bar da piscina do Grande Hotel do Luso, onde passava férias e, segundo reza a lenda, terá escrito o seu «Portugal e o Futuro». Era um homem triste, pesado, amargurado, sorumbático. Como se sentisse sobre os seus ombros toda a tragédia do fim do Império Português.
Os «Impetuosos Ventos da História»

O Bloguitica Nacional sugeriu-nos a leitura de um artigo de Eduardo Dâmaso, no Público, relativo à trasladação dos restos mortais de Maggiolo de Gouveia e ao comportamento que nesse processo teve o Ministro Portas.
Agradecemos a indicação, embora a leitura do referido texto nos não tenha entusiasmado por aí além.
No que toca ao comportamento do Ministro, já nos tínhamos aqui referido. A crítica do jornalista Dâmaso - que traz à colação assuntos que nada têm que ver com o comportamento do Ministro nesta matéria, como o famigerado «caso Moderna» - cheira mais a um ajuste de contas entre velhos camaradas de profissão do que outra coisa. Atitude que, de resto, tem vindo a cegar e a retirar objectividade a órgãos de comunicação idóneos como o «Expresso», sempre que se refere ao líder do PP.
Sobre os comentários feitos, a latere, é certo, sobre o fim do Império português, ressalta somente a referência aos «oficiais portugueses que tinham a difícil tarefa de lidar com os impetuosos ventos da História». Aí é que o assunto se complica. É que, estes “valorosos” militares não iam a passar por acaso ou circunstância pelo Largo do Carmo quando, em 25 de Abril de 1974, o Prof. Marcello Caetano lhes transmitiu o poder. Os “valorosos” militares fizeram uma revolução, substituíram um regime em exercício de funções, tendo como primeiro objectivo resolver o problema colonial português. Ou seja, o poder não lhes caiu nos braços: eles desejaram-no, conquistaram-no e não estiveram à altura das responsabilidades que livremente assumiram.
Eu admito até que, na altura, fosse difícil descolonizar pacificamente. Não tanto pelo ambiente vivido nos territórios ultramarinos que, à excepção da Guiné, estavam militarmente controlados, mas pelo jogo de interesses da União Soviética e dos Estados Unidos, que há muito ambicionavam aceder económica e geograficamente a esses territórios. O que não teria sido necessário foi a subserviência com que os nossos «descolonizadores» se relacionaram com todos os movimentos independentistas pró-soviéticos, deixando à margem outros grupos e protagonistas. Uns agiram por pura idiotia ideológica, julgando-se revolucionários de primeira apanha, quando pouco mais eram do que analfabetos armados. Outros, quiçá de patentes elevadas e em posições estrategicamente determinantes, serviram objectiva e conscientemente os interesses do Império Soviético, a quem, um dia, Ronald Reagan chamou com propriedade o «Império do Mal».
A consequência dos actos de uns e de outros foram milhões de mortos e a destruição económica e social desses territórios e das suas populações. Foi um crime. Podia ter sido diferente? Sem dúvida. Se Portugal tivesse sabido assumir as suas responsabilidades de País descolonizador e não tem «debandado» vergonhosamente, como corajosamente referiu à época o Prof. António José Saraiva.
Na verdade, por falar em «ventos impetuosos», pode-se aplicar aqui com propriedade um velho ditado popular: «quem espalha ventos, colhe tempestades».
MAGGIOLO DE GOUVEIA - II

O Bloguítica Nacional, blogue cujo recente surgimento aproveitamos para saudar, fez uma referência à 'posta' que aqui editámos sobre Maggiolo de Gouveia.
Em duas 'postas' sobre os recém acontecimentos que envolvem o falecido tenente-coronel do exército português, levantam-se algumas reservas sobre a sua qualificação de «anti-comunista», dúvidas quanto à sua adesão à UDT e, se bem me é oferecido entender, até sobre as circunstâncias da sua morte.

Pela nossa parte, queremos deixar claro que não consideramos de qualquer relevo a identificação ideológica de Maggiolo de Gouveia, vinte e oito anos volvidos sobre a sua morte, e que a achamos mesmo uma atitude a resvalar para o mau gosto, nos termos em que consta ter sido posta. As paixões dos homens devem fenecer com a sua morte e não os honramos se os lembrarmos por essas razões.

Contudo, na trasladação dos seus restos mortais parece-nos, desde logo, ter-se cumprido a vontade da sua família em o ter na terra dos seus cemitérios. Trinta anos depois, para nós que nada lhe éramos, parece-nos pouco mais do que um ritual funerário. Para os seus familiares, não será seguramente assim.

Por outro lado, sem qualquer intenção de aproveitamento político, há que considerar que Maggiolo de Gouveia é um símbolo: do fim sangrento do nosso Império, da maneira grotesca e patética como foi tratada a «descolonização» portuguesa, quer pela classe política então no poder, quer pelas forças armadas emergentes da revolução (António José Saraiva chegou a chamar-lhe uma «debandada de pé descalço») e, sobretudo, um símbolo da tragédia que se seguiu e mantém, em Timor, Angola, Moçambique, S. Tomé, na Guiné, onde milhões de mortos e condições de vida miseráveis vieram a suceder à presença portuguesa.
E é, por último, um símbolo da hipocrisia nacional: sempre me incomodou ver figuras, figurinhas e figurões lacrimejarem por Timor, em festivais e vigílias musicais, em retóricas televisivas e “literárias”, quando ninguém teve a coragem de interpelar nessa altura os protagonistas vivos dessa história e perguntar-lhes: como foi que aconteceu?

Não pense que sinto qualquer sentimento nostálgico do «Império». Nem tenho idade para isso, nem creio que, verdadeiramente, alguma vez, o nosso “rectângulo” continental o tenha possuído. O «Império Português» foi, desde sempre, resultado do espírito de aventura individual e da busca de uma vida melhor de muitos portugueses, desde que se iniciou no século XV. Do melhor espírito burguês e popular, conluiado com a melhor atitude aristocrática. Sem dúvida, também, produto de uma bem pensada expansão marítima, fruto de uma evolução científica de que fomos participantes. Quando o perdemos, já o não tínhamos e quando devíamos ter criado as condições para o tornar livre, fizemos rigorosamente o contrário.

De quem foi a culpa? Como sabe, em Portugal ela morre sempre solteira. Mas, pelo menos em homenagem a essa parte épica da nossa História, enterre-se Maggiolo de Gouveia com as honras devidas ao «último» soldado morto no Império Português. E que descanse em paz.
IGREJA E LIBERALISMO

A blogosfera liberal, conservadora e de direita (coisas distintas, como todos sabemos) tem debatido as relações entre a Igreja Católica, o catolicismo e o liberalismo. Cataláxia promete para breve uma ‘posta’ dedicada ao assunto. Entretanto, a quem interessar, aqui deixamos uma breve e sucinta referência a algumas das principais encíclicas papais que dispõem sobre o tema:

PIO IX: Quanta Cura e Syllabus Errorum (anexo),1864, fortemente avessa ao liberalismo e ao capitalismo;
LEÃO XIII: a) - Libertas, 1888, delimita as relações entre a Igreja e o “mundo moderno” e os seus princípios liberais; b) – Rerum Novarum, 1891, muito crítica em relação ao capitalismo industrial e ao socialismo marxista, é considerado o primeiro documento papal proponente de uma “via media” da Igreja, a partir da qual alguns cristãos e católicos desenvolveram as premissas ideológicas fundamentais da designada democracia-cristã. Propõe a intervenção do Estado para corrigir os excessos do capitalismo e para intermediar a relação entre classes sociais; c) Graves de Communi, 1901, defende assumidamente a via da democracia-cristã;
PIO XI: Quadragésimo Anno, 1931, mantém o acento tónico na identificação entre o individualismo capitalista e o colectivismo socialista: «Tal como a unidade da sociedade humana não pode erguer-se sobre a luta de classe, assim, também, a conveniente articulação dos negócios económicos não pode deixar-se à acção livre da concorrência desigual»;
PAULO VI: Octogésima, 1971, avesso à visão liberal do indivíduo;
JOÃO PAULO II: Laborem Exercens, 1981, fortemente crítico do socialismo e mais aberto à sociedade capitalista moderna, tendências a que não foram indiferentes as suas origens polacas e o seu conhecimento directo do “socialismo real”.

quinta-feira, agosto 14, 2003

JOSÉ MIGUEL JÚDICE

Lapidar, eloquente e cada vez mais oportuno, o Bastonário da Ordem dos Advogados dirige uma «Carta Aberta a Figueiredo Dias», na revista Visão desta semana, na qual comenta o sistema penal em vigor e uma entrevista feita ao seu autor, publicada na mesma revista há duas semanas.
Já tinhamos aqui feito um comentário a essas declarações, mas subscrevemos na íntegra o que hoje o Bastonário assinou. Entre outros importantes assuntos, refere Júdice: «Onde o paradigma constitucional merece revisão (...) é na classificação da legitimidade democrática do Poder Judicial, que realmente não pode sustentar-se num mero exame para ingresso no Centro de Estudos Judiciários. E daqui lhe lanço um amigável desafio: responda à pergunta que a si próprio faz: «de onde vem a legitimação de um Juiz para me meter na cadeia»? E responda à pergunta com a força moral que decorre da sua vida profissional e do seu rigor ético e intelectual».
Aqui está mais uma confirmação da crise do nosso Estado de Direito, que é cada vez mais e só, um Estado com Direito, tema que Cataláxia aborda insistentemente.
BOAS "POSTAS"

No Mata-Mouros, «O meu 25 de Abril para sempre, no O Carimbo, em sentido oposto no que se refere ao Ministro Portas, «Ainda o General Silva Viegas» e, no O Intermitente, um oportuno link remetendo-nos para um artigo sobre as relações intelectuais entre Popper e Hayek, «Quem influenciou quem?». Em minha opinião, o resultado é um retumbante empate (2-2)
ESTADO E LIBERALISMO: REALIDADE E UTOPIA


I. PRESSUPOSTOS
Avessos a dogmas e conscientes da falibilidade de modelos sociais e políticos construídos, os liberais questionam-se frequentemente sobre a validade dos fundamentos que constituem a “espinha dorsal” do seu pensamento e sobre as conclusões de índole “prática” que dele decorrem ou podem decorrer.
Saber se a análise de Hayek sobre a “ordem espontânea” tem alguma aderência à realidade, se a análise cataláctica de Mises tem paralelo no nosso mundo, ou se as propostas políticas de Rothbard ou Nozik merecem, sequer, ser consideradas por fantasistas que possam parecer, são preocupações constantes e pertinentes de homens e mulheres que, embora tenham, pelo menos, uma intuição liberal, duvidam da sua verosimilhança num mundo dominado, nos mais íntimos aspectos, pelo velho inimigo do laissez-faire: o Estado.
Assentemos, como pressuposto, antes de excluirmos qualquer hipótese, no velho método popperiano de validação científica de uma teoria: «a sua capacidade de ser refutada ou testada» (Karl R. Popper, Conjecturas e Refutações, Ed. U. Brasília, 1982. Vd. do mesmo autor, sobre este assunto, A Lógica da Pesquisa Científica, Ed. Cultrix, 1993). Assim sendo, e nada fazendo crer que as hipóteses que o liberalismo tem colocado sobre as formas de organização política não possam vir a ser testadas, elas são, até lá, cientificamente válidas, muito embora possamos vir a concluir pela refutação da sua validade.

II. NEM SEMPRE FOI ASSIM
O Homem do fim do século XX e dos começos do século XXI viveu, toda a sua vida, sob a égide do Estado centralizador. Conheceu, por via directa ou pelos relatos da geração que o antecedeu, do que lê e do que ouve, modelos brutais de organizações políticas estaduais, desrespeitadores dos mais elementares princípios da humanidade. Para evitar que se repitam experiências semelhentes, "sabe", desde criança, que o indivíduo pertence a um todo, a uma colectividade, e tem que pagar por isso. Está tarimbado com conceitos de “justiça social”, “justiça redistributiva”, finalidade social da propriedade, tributação progressiva em função dos rendimentos, etc. Muitas vezes ignora que estes conceitos aparentemente generosos, nasceram e fundamentaram as mais terríveis tiranias, como as ditaduras fascitas e comunistas europeias. E “sabe”, também, que o Estado protector alcançado no pós-guerra, a partir de meados do século passado, é uma garantia da sua liberdade e da paz.
Contudo, nem sempre foi assim. O Estado que hoje conhecemos e que é uma degenerescência do Estado-Nação oitocentista e do Estado Absolutista que o antecedeu, nem sempre foi a melhor forma de organização política dos homens, e a que hoje sobeja, não se compagina de forma adequada com a evolução acelerada que a tecnologia põe à disposição da soberania individual. Quer isto dizer que, nos dias que correm, os habitantes das cidades europeias podem vir a ser auto-suficientes, vivendo todas as suas vidas “sem sair de casa”, graças aos meios de circulação de informação e de acesso ao mundo. Ou seja, de costas voltadas para o Estado. Ainda que seja, por enquanto, uma utopia, por mais desagradável que essa visão nos possa parecer, o Robinson Crusoé urbano vem a caminho. Assim sendo, para que carece ele do Estado?

III. O MODELO ACTUAL
Curiosamente, quanto mais se desenvolve a tecnologia à disposição da soberania do individuo, mais parece avolumar-se a extensão do Estado Social.
Por cada inovação, uma regulamentação e inúmeras proibições. Se falamos na net, logo surgem os profetas da desgraça desejando impor regras limitadoras da sua utilização. Se tratamos da clonagem, movimentam-se de imediato as consciências religiosas e estaduais, movidas por razões de dúvida ética. Se discutimos os modelos vigentes de segurança social, forças armadas ou tributação, logo se agigantam os protagonistas políticos alertando para a complexidade e imprevisibilidade das mudanças, ou para a fatalidade do colapso de velhas instituições.
De facto, a evolução do Estado Social no Ocidente tem sido, desde o começo do século passado com uma grave aceleração no pós-1945, no sentido de a) - formalizar todas as liberdades e garantias dos cidadãos, b) - de estereotipar o controlo democrático e popular do poder político, e c) - de ampliar de forma quase ilimitada os poderes do Estado, sob uma falsa legitimidade democrática. Analisemos com um pouco mais de detalhe estes aspectos.

a) - São inquestionáveis as garantias e liberdades individuais dos cidadãos nos Estados democráticos ocidentais. Serão? O que é que se entende pela denominada “crise da justiça”, comum em quase todos os nossos países, senão a manifestação de dúvidas e receios sobre a idoneidade da máquina repressiva e de justiça dos Estados. Será que os cidadãos ocidentais confiam plenamente no sentido de equilíbrio e de justiça dos agentes desse importante poder, para não dizer já, da sua incorruptibilidade. No essencial, não duvidamos que esse sistema funciona. Mas, todos estamos conscientes de que as suas deficiências são cada vez maiores, podendo afectar um sem-número de indivíduos concretos com decisões injustas e irreparáveis. Quando, por exemplo, recentemente em Portugal alguém bem posicionado afirmou estar satisfeito com o actual sistema de prisão preventiva, porque, pelo menos 80% das pessoas nessa situação eram posteriormente condenadas a penas efectivas, pergunta-se, e os outros 20%? Quem lhes repara o tempo perdido e a ignomínia passada? Haverá reparação possível? E, não serão condenados alguns desses 80% por estarem já na condição em que se encontravam em julgamento, naturalmente condicionadora de uma decisão inteiramente livre de quem julga? Um liberal não deve satisfazer-se com um sistema que possa ainda prejudicar tanta gente inocente (ou não comprovadamente culpada).

b) - Com o controlo político passa-se algo de muito grave e preocupante: o sentido oitocentista e primordial de Constituição – governo limitado (cfr. F. A. Hayek, Droit, Législation et Liberté, PUF, 1979), bem como a ideia de controlo do exercício do poder político por via do método democrático e do sufrágio universal directo, implantados no século XX, encontram-se completamente adulterados. A evolução das nossas democracias consagrou castas de governantes no exercício rotativo do poder estadual, que são ou não plebescitados por ciclos variáveis de quatro a sete anos por um número cada vez mais reduzido de eleitores. Se repararmos, a abstenção é exponencialmente crescente nas nossas democracias ocidentais. Raramente inferior a 40% do colégio eleitoral, atingindo, por vezes, margens absurdas de 60% e 70% em certos países, em determinadas eleições. O que isto quer significar não é o alheamento das pessoas em relação à política, mas a sua clara noção de irrelevância da sua participação. Se repararmos – e o eleitor comum repara – nas castas dirigentes ocidentais há sempre dois grandes partidos nucleares, que se revezam no governo central, e mais quatro ou cinco agremiações políticas menores, que se coligam circunstancialmente às primeiras. Este pessoal político constitui uma verdadeira elite dirigente que, ganhe ou perca eleições, está sempre posicionada no aparelho político do Estado, seja na administração central, local ou regional. Tem acesso aos meios de informação, de promoção e ao Orçamento público. Uma vez eleitos, controlam-se a si próprios, tendo bem a noção de que, sendo o poder rotativo, há valores do establishment que nunca deverão ser questionados. Por outro lado, o acesso a essa elite política é, naturalmente, muito condicionado, desde logo por regras draconianas de acesso aos órgãos decisórios dos partidos. Isto corresponde à consagração de uma aristocracia política, uma autêntica oligarquia de poder, legitimada por um sufrágio inexpressivo, amorfo e cada vez menos representativo. Gordon Tullock, William Niskanen e Albert Breton, da Public Choice, teorizaram pormenorizadamente sobre a burocracia política, desde, pelo menos, a década de setenta do século passado. Só que as coisas, ao invés de melhorarem, têm piorado consideravelmente.

c) - Por fim, os poderes do Estado têm aumentado vertiginosamente nos últimos cinquenta anos, ainda que substancialmente diminuídos nalguns sectores económicos, durante a designada “revolução conservadora” anglo-saxónica dos anos oitenta do século XX. Escreve Hayek: «O princípio segundo o qual toda a acção do governo deve ter a concordância da maioria não pressupõe, portanto, necessariamente, que esta última tenha moralmente o direito de fazer o que lhe aprouver. (…) Democracia não é, necessariamente, governo ilimitado» (F. A. Hayek, Os Fundamentos da Liberdade, Ed. Un. Brasília, 1983).
Mas, a verdade é que o governo na tradição democrática ocidental tem ampliado largamente os seus poderes, invocando, para isso, uma legitimidade sufragada pelo voto popular, representada em assembleias parlamentares. Contudo, os fundamentos da adesão do liberalismo ao parlamentarismo e ao sufrágio universal fundamenta-se no facto de eles terem sido considerados métodos satisfatórios de limitação do poder do Estado e do governo. Nunca foi objectivo do liberalismo clássico atribuir poderes quase ilimitados a estes novos órgãos políticos. É, porém, o que tem vindo a suceder, na mais pura linha da soberania popular rousseauniana: «En fait, la prétention du Parlement à la souveraineté signifia d’abord seulement qu’il ne reconnaissait aucune volonté au-dessus de lui» (Hayek, Droit,…op. cit, vol. 3 – L’Ordre Politique d’un Peuple Libré»).

IV. LEI E TRIBUTAÇÃO
O que ninguém pode negar é que, nos dois domínios em epígrafe, o poder do Estado democrático nunca foi tão forte como nos dias de hoje.
A lei já não conhece limites que não sejam os que se referem aos direitos fundamentais dos cidadãos, sendo que estes são, quantas vezes, “atropelados” por formalismos jurídicos. É a consagração da «doutrina da soberania» a que se refere Herbert L. A. Hart: «o hábito geral de obediência do súbdito tem, como complemento, a ausência de um tal hábito por parte do soberano. Ele cria direito para os seus súbditos e fá-lo a partir de uma posição exterior a qualquer direito. Não há, nem pode haver, quaisquer limites jurídicos ao seu poder de criação de direito. (…) Por outro lado, a teoria não sustenta que não haja limites ao poder do soberano, mas apenas que não haja limites jurídicos a esse poder» ( H. L. A. Hart, O Conceito de Direito, Fund. C. Gulbenkian, 1986).
Esta subtileza formal dos «limites ao poder do soberano e limites jurídicos ao poder jurídico do soberano) é o quem vindo a permitir ao Estado contemporâneo um amplo e excessivo aumento dos mecanismos tributários e do que é cobrado aos cidadãos, pela via fiscal, pelos serviços que supostamente o Estado lhes presta: «No início do século XIX as receitas fiscais do Estado representavam em média 8% a 10% do rendimento nacional dos países europeus. Hoje o Estado absorve entre 30% a 50% dos recursos nacionais» (Henri Lepage, Amanhã o Capitalismo, Pub. Europa-América, ano não indicado). É bom salientar que Lepage escreveu esta afirmação em 1977. De então para cá, todos reconhecemos que a situação se agravou. Porquê? Alguém se atreve a dizer que o Estado melhorou os serviços prestados? Que os ampliou? Evidentemente que não: o Wellfare State keynesiano “engordou” brutalmente nos últimos cinquenta anos, tornou dependentes de si milhões de trabalhadores que pouco ou nada fazem que, pelo menos, não pudesse ser feito melhor por empresas privadas, isto é, sem intermediários, e não sabe o que lhes há-de fazer. Em suma, nada produziu, endividou-se e só lhe resta ir ao bolso do cidadão buscar o rendimento que gasta mas não gera.
Eu diria que este grave atentado à propriedade privada, baseado numa falsa interpretação democrática da vontade popular, leva ao empobrecimento das pessoas e das sociedades. E é um terrível atentado à liberdade cujos resultados são imprevisíveis. Se, como escreveu Ludwig von Mises, «La historia de la humanidad es la historia de la propriedad privada» (L. Von Mises, Liberalismo, Unión Editorial, S.A., Madrid, 1982), os últimos e os próximos capítulos não são os melhores.

V. QUEM CONTROLA OS NOVOS PODERES?
Se a essência da democracia liberal é o controlo do poder político, como e quem controla os novos poderes do Estado, nomeadamente o seu poder legislativo quase ilimitado e os abusos fiscais cometidos?
A separação de poderes e a Constituição, soluções clássicas, não são já suficientes, se aceitarmos que a praxis democrática constituiu uma oligarquia política que, no essencial, não se desentende e estagnou o desenvolvimento liberal e democrático, invocando razões de "justiça social", ensino e saúde gratuítos, segurança e outras, hoje completamente desacreditadas.
E os outros poderes que estão em afirmação crescente como, por exemplo, a televisão e a comunicação social? Se num Estado liberal todo o poder exercido sobre os cidadãos merece um controlo democrático, quem controla a informação, no sentido, não de a filtrar ou orientar politicamente os seus conteúdos, mas de estabelecer regras gerais e abstractas que a discipline e civilize, de forma a evitar danos mais do que evidentes cometidos sobre as pessoas (veja-se, a este propósito, um importantíssimo texto de Karl Popper e John Condry sobre os efeitos nocivos da televisão na educação das crianças, Televisão: Um Perigo para a Democracia, Gradiva, 1999).
A resposta é simples: ninguém!
Os poderes da sociedade política avolumaram-se e tornaram-se mais complexos, mas a resposta que o Estado de Direito lhes dá permanece igual à que era no fim do século XIX.

VI. UTOPIA LIBERAL E REALIDADE
«La acción gubernamental, en opinión del liberal, debe constrenirse a proteger la vida, la salud, la libertad y la propriedad privada individual contra todo asalto» (Mises, op. cit).
«O Estado é a mais vasta e mais formidável organização criminosa de todos os tempo, mais eficaz do que qualquer Máfia na História. (…)
(…) A liberdade é o direito natural de cada indivíduo dispor de si mesmo e daquilo que adquiriu por troca ou por dádiva: a propriedade e a liberdade são, portanto, indissociáveis. Todo o atentado à propriedade é um atentado à liberdade. (…)
(…) Polícia e justiça não são noções abstractas: decompõem-se numa série de serviços precisos que o Estado presta melhor ou pior. (…)
(…) Numa sociedade libertária, os serviços de polícia seriam muito provavelmente prestados pelas companhias de seguros; estas teriam vantagem em evitar o crime e o roubo – mais do que tem a polícia actual – e incluiriam o custo desse serviço nos prémios de seguros. (…)
(…) Numa sociedade libertariana, o crescimento económico seria rápido, pois o Estado não entravaria com taxas e regulamentações: haveria, portanto, muito menos pobres. E a caridade seria reabilitada. No sistema actual, perante a miséria, a nossa reacção é dizer: “o Estado que se ocupe do assunto”»
(Murray Rothbard entrevistado por Guy Sorman, Os Verdadeiros Pensadores do Nosso Tempo, Inquérito, 1990)

Enfim, estas citações reflectem um pouco do que usualmente é designado pela “utopia liberal”. Muitas outras poderiam ser acrescentadas, como, por exemplo o “comunitarismo individual” de Robert Nozik (cfr. Anarquia, Estado e Utopia, Jorge Zahar Editor, Lta, Rio de Janeiro, 1992), ou a “demarquia” de Hayek substituta da democracia corrompida vigente (cfr. «Droit…vol. 3”, op. cit.) e outros mais poderiam ser aqui referidos.
Há uma tendência imanente à filosofia política de propor soluções globais, mesmo quando se pretende que elas resultem com “espontaneidade”. É uma tentação irresistível e provavelmente refutável à qual os liberais e os libertários também não escapam.
Mas nada disto fere a verdade dos pressupostos de que essas mundividências reflectem. Nem retira a validade a muitas das soluções propostas.
Par um liberal nos dias de hoje, é fundamental compreender que o Estado intervencionista, keynesiano, atentatório da propriedade privada e da liberdade está, no mundo ocidental, mais activo do que nunca. É essencial relançar o debate sobre o controlo destes modelos de Estado e de Governo, tendo a consciência de que o caminho político percorrido no Ocidente está muito longe da sua matriz liberal originária: Estado de Direito = Governo controlado.
Aos nossos olhos, o Estado surge-nos actualmente como um verdadeiro Leviathan hobbesiano moderno. Poderoso e intransponível. Pode, contudo, não ser bem assim: tudo indica que a vertiginosa evolução tecnológica vai no sentido de ampliar a esfera de soberania individual e há que a saber aproveitar nesse sentido (a blogosfera é, por exemplo, uma boa manifestação desse espírito e qualquer tentativa de a obrigar a registo e depósito é, obviamente, assassinar a sua natureza).
Um liberal deve, nos dias de hoje, esforçar-se por transmitir estas ideias à opinião pública e pugnar pela efectiva redução dos poderes do Estado, por um maior respeito pelo rendimento e pela propriedade privada, pelo controlo efectivo do exercício do poder político, em suma, pela defesa da liberdade individual. Existem condições para que uma opinião pública forte possa influenciar o poder político, mas ninguém tenha a ilusão, como bem salientou Mises, que um governo venha a exercer o seu poder ao encontro dessas ideias: «Falar de um governo liberal, realmente, constitui uma contradictio in adjecto. Só a pressão unânime da opinião pública obriga o governante a liberalizar; ele jamais o fará de motu próprio» (op. cit.). Veja-se, concretamente e para não irmos mais longe, a desproporção entre as promessas fiscais e descentralizadoras feitas pelos partidos do nosso actual Governo e o exercício efectivo do poder.

Entre utopia e realidade, entre liberalismo e estatismo, é necessário criar uma cultura popular que faça desta utopia uma «visão inspiradora», como bem lhe chama Nozik. Isto é, eu não sei se é possível voltar a atingir um "Estado Mínimo", mas essa terá sempre de constituir a finalidade de uma genuina intervenção liberal.
Há quase trinta anos, no dia em que tomou posse de Primeiro-Ministro do Reino Unido, a Sra. Thatcher escreveu uma carta ao já então velho Prof. Hayek. Nela podia ler-se: «Obrigado, Prof. Hayek. Se eu vier a triunfar, em muito lho devo a si». Valeu a pena, não valeu?

quarta-feira, agosto 13, 2003

MAGGIOLO GOUVEIA

Quase trinta anos volvidos, os restos mortais do tenente-coronel do exército português Rui Alberto Maggiolo Gouveia regressam a Portugal, graças aos esforços da sua familia. Ser-lhe-ão prestadas homenagens fúnebres por representantes do governo português. Já não era sem tempo. Que descanse em paz.
Finalmente é lembrado, com honra e mérito, um soldado português que morreu por aquilo que pensava ser a defesa da sua comunidade. Não me lembro, ao longo de todos estes anos lacrimejantes por Timor, que lhe senham sido feitas muitas referências elogiosas. Mas aos que o assassinaram vi.
O Estado português repõem, assim, um pouco da sua imensa dignidade perdida.

terça-feira, agosto 12, 2003

PERDOAR É SER LIVRE

Por insondáveis desígnios, só hoje me foi dado ler o último 'post' editado no Lusitana Antiga Liberdade, da autoria de Teresa Martins de Carvalho. «Perdoar», assim se chama, foi publicado já no dia 28 de Julho e é um texto é de uma extraordinária inteligência e sensibilidade, escrito num estilo difícil de encontrar na blogosfera que conheço.
Mau-grado a morte prematura, não há nenhuma que o não seja, do Prof. Henrique Barrilaro Ruas, que há-de justificar a quase interrupção do blogue, bom seria que ele regressasse em pleno.

segunda-feira, agosto 11, 2003

AGRADECIMENTOS II

À Causa Liberal, blogue fundador e referência primeira dos blogues liberais, pela indicação de "leitura obrigatória" da nossa posta DIREITO E LIBERDADE II.
A luta continua!
AGRADECIMENTOS

Ao Mata-Mouros, blogue de consulta diária obrigatória, ao qual também reconhecemos oportunidade, muito talento e sentido de humor. Cá ficamos a aguardar a réplica aos nossos DIREITO E LIBERDADE, que leremos com atenção.
Quanto à citação, em francês, do Hayek, também o citamos em inglês e, um destes dia, em português com "sotaque" brasileiro. Neste último caso, refiro-me a uma excelente edição da Universidade de Brasília dos «Fundamentos da Liberdade» («The Constitution of Liberty»), que adquirimos em segunda mão, por um preço satisfatório, há já alguns anos.
Quanto à utilização do francês, obviamente que se dirige ao intelectualmente malogrado EPC. A quem ambicionamos ver, um dia, tocar piano.
DIREITO E LIBERDADE – PARTE II

Do .João Pedro Granja recebemos o seguinte comentário à nossa ‘posta’ DIREITO E LIBERDADE, que aqui reproduzimos pelo interesse que nos suscitou e porque será uma boa oportunidade para tentarmos uma melhor aproximação ao que pensamos ser uma ideia liberal do direito:

«O Rui escreve: “Para o liberalismo, o direito deve uma emanação da ordem
social espontânea e não o oposto.”. Eu não consigo concordar com esta
afirmação e diria até que é a nódoa do melhor pano que é este seu post.
Esperava que para um liberal o direito devesse ser uma ordem que pugnasse por
garantir as liberdades individuais e a segurança de um cidadão. Se a realidade
não se compatibiliza com um enquadramento legal justo e liberal, o caminho
seria sempre modificar as instituições ( coisa que não é fácil e demora o seu
tempo), por forma a que a sociedade se aproxime do nosso objectivo, que penso
ser uma sociedade aberta de livre mercado. A resposta sugerida naquela frase
por parte do meu caro interlocutor é diferente. Parece querer indicar que o
Direito se deve modelar à ordem social instalada, dando, deste modo, a
entender que defende o positivismo ético. Acho que o Rui não concorda nada com
isto pois trata-se de uma posição ultra-conservadora e autoritária. Isto
porque corremos a probabilidade de a “realidade”, “a ordem social espontânea”
ser uma, que não defenda as liberdades e garantias dos cidadãos, é grande ,
não devendo neste caso (e na minha opinião em qualquer um) o Direito ser
emanado das normas vigentes na sociedade.
Para finalizar devo dizer que percebo o contexto da frase e a situação
concreta a que se refere o “post”. De facto as leis não devem ser feitas por
pessoas desligadas da realidade concreta, mas aí a afirmação mais correcta
seria, na minha opinião, a seguinte: O Direito não devia ser criado por maus
profissionais que não conhecem as instituições que serão afectadas pelo
sistema legal».


A primeira questão que se torna necessário esclarecer é o que se entende por «ordem social espontânea».
Desde já adiantamos, que estamos próximos da interpretação que é dada por Hayek ao longo de toda a sua obra, que ele escalpeliza em «Droit, Législation et Liberte – vol. 1 – Règles et Ordre» (PUF, 1985). Esta é, segundo nos parece, a melhor interpretação da natureza e complexidade das sociedades humanas e a que melhor se adapta a uma leitura liberal.
Hayek considera que o mundo emergente da revolução industrial, que designa pela ‘Grande Sociedade’, é um conjunto complexo de um sem número de relações individuais, que nenhum espírito humano, por mais dotado ou equipado que esteja, pode conhecer na sua totalidade. Por conseguinte, este é um pressuposto fracturante em relação a todo o pensamento construtivista, do qual o socialismo e o keynesianismo são dois bons exemplos, em conformidade com o qual, a sociedade pode ser quase ilimitadamente modificada por actos de vontade dos seus protagonistas políticos.

Para os liberais, e cito Hayek livremente, as instituições são mais o produto dos nossos actos do que da nossa vontade. Significa isto que a sociedade, a Grande Sociedade, resulta de um número incontável de actos diários, momentâneos, quotidianos e permanentes de todos os seres humanos que nela habitam. Essa sociedade obedece, naturalmente, a regras que visam o seu melhoramento progressivo, a sua preservação e o seu desenvolvimento. Essas regras não são decretadas por via legislativa, mas são geradas de forma espontânea e selectiva, à medida que se vão manifestando como úteis aos homens que vivem sob a sua alçada. Explica Hayek: «L’esprit ne fabrique point tant dês ràgles qu’il ne se compose de règles pour l’action ; c’est-à-dire d’un complexe de règles qu’il n’a pas faites mais qui ont fini par gouverner l’action des individus parce que, lorsqu’ils le appliquaient, leurs actions s’avéraient plus efficaces, mieux réussies que celles d’individus ou de groupes concurrents».
Ou seja, por exemplo, ninguém decretou a existência da família, da religião ou da propriedade privada. Mas elas são, à imagem e semelhança de muitas outras, as melhores formas de os homens disciplinarem certos domínios das suas existências. Não ignoramos que, por exemplo, num determinado momento histórico, o Estado Nação, com fronteiras fechadas e fortificadas, foi a melhor maneira dos homens se organizarem e defenderem, e, por conseguinte, satisfazerem o seu instinto elementar de sobrevivência. Mas sabemos hoje, felizmente, que em consideráveis regiões do mundo as nossas sociedades podem, com benefícios acrescidos, optar por outras formas de organização política, como o Estado Federal ou, no futuro, quem sabe, outras formas ainda mais descentralizadas de distribuição do poder. Quem determinou isto? Todos e ninguém. Mas, o que é certo e seguro, é que nenhum legislador poderá criar ou destruir, por acto legislativo, estas instituições humanas. Veja-se o que sucedeu nos países comunistas com a eliminação da propriedade privada, ou com a proibição dos cultos religiosos (o “ópio do povo”) por exemplo.

Estamos, então, em pleno domínio da epistemologia, ao levantarmos a questão dos limites do conhecimento humano. A atitude liberal, como bem retrata Karl Popper, deve ser optimista, mas consciente: «Acredito que valeria a pena tentar aprender algo sobre o mundo, mesmo que, ao fazê-lo, descobríssemos apenas que não sabemos muita coisa» (Conjecturas e Refutações, Ed. Univ. de Brasília, 1982), diz ele. Esta atitude, ainda segundo Popper, secundado, mais tarde, por Hayek, inscreve-se na tradição epistemológica liberal, à revelia do pensamento construtivista, inspirado na doutrina da vericitas naturae de Descartes e Bacon: para estes exaltados defensores do absolutismo racionalista, nada na natureza podia escapar à razão humana. Aquela seria um livro aberto que a razão leria sem dificuldade.
Pelo contrário, o liberalismo pressupõe que o homem pode conhecer (logo pode ser livre), mas não pode conhecer tudo, nem pode adivinhar. Sobretudo, não pode adivinhar.
Precisa Hayek: «Le fait de notre irrémédiable ignorance de la plupart des faits particuliers qui déterminent les processus sociaux est, cependant, la raison pour laquelle la plupart de nos institutions sociales ont pris la forme qu’elles ont en fait».
Esta humildade epistemológica contrapõe-se à perspectiva construtivista que, em obediência às ideias do racionalismo absolutista cartesiano, entendem que tudo pode ser mudado, alterado, consoante a vontade dos homens e a sua capacidade de actuação.

Ora, este é um dos dramas da história da humanidade.
Todos sabemos que é em nome das “grandes” ideias que se dão as enormes tragédias: veja-se, a título meramente sugestivo, as perseguições religiosas aos judeus e aos hereges, a sociedade sem classes, o império milenar racista alemão ou, para não irmos mais longe, o fundamentalismo islâmico. Ou seja, quando um grupo de iluminados, sejam eles a vanguarda do proletariado ou a elite governante, entendem impor o seu modelo de sociedade, esta, invariavelmente, reage mal e sofre as consequências.

Para o liberalismo, a Grande Sociedade é, no seu todo, indecifrável e ingovernável por intermediários. Isto é, o liberalismo privilegia sempre uma relação directa entre indivíduos portadores de interesses concretos, a introduzir de permeio o Estado que, mais não é, do que um conjunto de indivíduos dotados de poderes especiais, que, supostamente, lhes foram delegados.
O Estado deve assegurar, desde logo, que a Grande Sociedade se possa desenvolver harmoniosamente, isto é, que os cidadãos possam interagir num mercado global. Deve, obviamente, garantir os mecanismos necessários a que isso possa suceder. Desde logo, há-de garantir aos cidadãos as suas instituições sociais estruturantes (ordem social espontânea), geradas ao longo de séculos, por processos lentos de erro, aprendizagem, adaptação e consolidação: a propriedade, a família, a liberdade, os direitos fundamentais, etc..

Aqui se entronca a questão central: qual o papel da lei numa sociedade liberal actual?

Do ponto de vista construtivista, para o qual as sociedades humanas resultam das vontades – dos caprichos – voluntaristas de alguns eleitos, a lei é um instrumento que o Estado deve utilizar sem limites, para “a felicidade dos povos”. Identifica-se, deste modo, o direito com a lei, com a lei positiva, que deve ser manejada sem limitações pelo poder soberano do Estado. Que, no limite máximo do positivismo de Kelsen, são – Estado e Direito – plenamente coincidentes. Afirma Kelsen: «Tanto na linguagem corrente, como para o jurista, a palavra “Estado” designa uma ordem que é, sobretudo, normativa. (…) O Estado, afirma-se por exemplo, é essencialmente Poder; por consequência, ele é superior aos indivíduos que estão submetidos às suas regras. Esses indivíduos são os seus súbditos». E acrescenta: «A realidade não pode ser a imagem perfeita da ordem normativa, mas deve, no entanto, ter um mínimo de semelhanças com o seu modelo ideal» (Teoria Geral do Estado, Coimbra, 1938)

Pode-se, naturalmente, obstar a que as sociedades actuais sejam modelos de positivismo jurídico ilimitado. Sem dúvida que existem um conjunto de limites, em regra determinados pelos textos constitucionais, que são limites absolutos ao legislador. Estará, deste modo, assegurada a essência de uma sociedade liberal, que consiste, no seu limite mínimo, ao reconhecimento de um conjunto de instituições inamovíveis, como a propriedade, a liberdade, a livre concorrência? Penso que não.

É que, e aqui reside o cerne do nosso problema, em nossa opinião, o moderno positivismo jurídico invoca outros princípios e outra legitimidade, e já não a legitimidade racionalista do iluminismo leninista ou fascista. Os fundamentos para a actividade quase ilimitada do legislador, hoje em dia, nas sociedades ocidentais, residem no sufrágio universal directo. Se repararmos, excluindo um núcleo residual, importante, é certo, de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, consagrado nos textos constitucionais, tudo o mais está ao dispor do legislador. Veja-se, por exemplo, o que sucedeu entre nós, há ainda pouco tempo, na Constituição Portuguesa de 1976, e no violento ataque que se fez, por via legislativa, ao direito de propriedade. Mas, ainda hoje, para não nos quedarmos muito para trás, considero uma absoluta violação do direito de propriedade todos os esquemas legais e subterfúgios diversos, de que o Estado lança mãos, para obter receitas dos cidadãos e das suas empresas. Se fizermos contas, entre impostos directos e indirectos, taxas e outras formas disfarçadas de tributação, o Estado absorve-nos mais de 60% do nosso rendimento e, ao longo da vida, da nossa propriedade. Taxa-nos o património de todas as maneiras. Prepara-se, em Portugal, para o avaliar e reclassificar para efeitos tributários.

Quem impõe limites a isto? Curiosamente, quase sem excepção, quando estão no governo, para obter receitas e sustentar as suas pesadas máquinas burocráticas, os partidos não se distinguem na actuação fiscal.
E, podíamos ir para além das questões relacionadas com a propriedade e o património. Ainda há pouco, a propósito de um conhecido caso mediático, se questionou se a legislação promulgada sobre escutas telefónicas não põe em causa direitos fundamentais. Ou a aplicação e prazos da prisão preventiva. E por aí em diante.

Quer isto dizer, que se corre o risco de o actual positivismo ter como fundamento a soberania do povo, expressa em sufrágio universal directo. O que a maioria decidir está bem decidido, porque exprime uma opinião dominante. Ora, nem sempre assim o é e este raciocínio pode levar a perversões sem fim: Hitler, por exemplo, foi eleito em sufrágio democrático com maioria; ao longo do seu sangrento governo, a maioria, pelo menos aparente, do povo alemão sempre lhe manifestou o seu apoio.
Escreve Hayek: «This development hás resulted from the rise of democratic government interpreted as unlimited government, and from the legal philosophy congenial to it, legal positivism, which attempts to trace all law to the expressed will of a legislator» (New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, Routledge, 1990).

Em suma, do que se trata para uma perspectiva liberal do direito e da lei, é que estes reproduzam, tanto quanto o possível, as normas e regras geradas pela Grande Sociedade, de forma evolutiva e espontânea. Sabemos, é certo, que o domínio do Estado contemporâneo as ultrapassa largamente. Mas, o liberalismo deve bater-se pela imposição de limites a esse poder, a todos os poderes, para que, pelo menos, se preserve o essencial: a propriedade, a liberdade, a família, a democracia, o sufrágio universal, mas também, uma justa tributação e uma eficaz fiscalização do que é feito com o produto do nosso esforço e do nosso trabalho.
O Estado de Direito, a Constituição, a separação de poderes, os direitos, liberdades e garantias constitucionalmente democráticos, o sufrágio universal directo, são importantes, mas já não são suficientes.

A questão última, para um liberal, não se põe em confiar ou desconfiar em pessoas concretas no exercício de funções públicas, mas em relação à própria entidade soberana (e, por isso, extraordinariamente poderosa) que é o Estado. A questão do governo (e do consequente exercício do poder legislativo) não se põe em saber se escolhemos os melhores ou os piores, mas sim, como escreveu Popper, «de que modo podemos organizar as nossas instituições políticas de forma que os governantes maus e incompetentes não nos possam causar muito dano?» (op. cit

domingo, agosto 10, 2003

MEU CARO FRANCISCO,

Com justo receio de que isto comece a assemelhar-se à secção de correspondência da revista «Maria» dou, aqui e hoje, por encerrada esta nossa polémica estival. Aliás, só mesmo num tempo quente, de 'assar ananases', e de férias, nos seria lí­cito perder tempo e sono com estas coisas, como muito bem você observa. No essencial, esta polémica reduz-se ao seguinte: você é social-democrata, será um entusiasta militante do PSD, e eu sou liberal, sem partido à vista. Daqui não vem grande mal ao mundo e, de resto, ao mundo pouco interessa o que nós os dois sobre ele pensamos.

Apenas 'duas' notas sobre o que você escreveu.

Quanto a Sá Carneiro ter tentado uma coligação de governo com o PS, julgo que isso não tem qualquer fundo de verdade. Foi, aliás, uma 'revelação' feita depois da sua morte, que resultou de algumas confidências de personagens secundárias e, principalmente, de Mário Soares, que contou que Sá Carneiro lho teria proposto pelo telefone. Ora, quem conhece o rumo da nossa história contemporânea, sabe bem que esse foi sempre o sonho do então lí­der do PS, que chegou mesmo a concretizar-se no mais enfadonho pastelão da polí­tica portuguesa que foi o 'Bloco Central'. Destruí­do, em boa hora, por aqueles que no PSD reclamavam a herança de Sá Carneiro. Não me parece, assim, que exista qualquer fundamento nessa hipótese que, de resto, colidiria com a natureza anímica de Francisco Sá Carneiro. Ele gostava de separar águas e sabia que a visão que o seu PSD e o PS de Mário Soares tinham para o Paí­s, apenas em muito pouco convergiam.

Sobre a minha putativa 'pureza' e quanto a eu conhecer ou não algum partido ou políticos que, como você diz, não 'metam as mãos na merda', a questão só me interessa, porquanto, a 'merda' de que você fala é o dinheiro dos meus impostos. E, como esse dinheiro representa o esforço do meu trabalho, entendo que deve ser respeitado e rigorosamente acautelada a sua utilização. Num governo liberal, essa é uma prioridade. Nos paí­ses politicamente exigentes, quando o governo 'mete as mãos na merda', as pessoas metem o governo na rua. Aliás, foi por abusos de tributação, que se fizeram alguns dos grandes momentos históricos dos paí­ses civilizados, como, por exemplo, a Magna Carta, a Revolução Gloriosa, a Revolução Americana, a Revolução Francesa. George Bush (o pai) perdeu a sua reeleição por, supostamente, ter mentido ao eleitorado americado sobre o aumento da carga fiscal (lembra-se, já devia ter idade para isso, daquela coisa do «read my lips»?). Eu sei que, em Portugal, não há uma tradição de exigência nessas coisas, como em muitas outras. Mas um liberal não se satisfaz com a constatação desse facto e, ainda que modestamente, deve tentar contribuir para que as coisas mudem para melhor.

Sobre os seus conhecimentos da história da social-democracia, não me manifesto, porque não duvido que sejam bem mais completos do que os meus.
Mas já o mesmo não direi sobre a expressão «puro» que você utilizou. É que, enquanto você a empregou como um adjectivo, eu costumo utilizá-la como substantivo, isto é, como sinónimo de um belo charuto cubano, um Partagás Lusitania, por exemplo, ou de um Robusto da Cohiba. Desconheço se você já tem idade para fumar, mas, se ainda não tem, quando lá chegar não deixe de experimentar.

Por último, sobre o latim, eu também não o estudei no liceu. 'Estudei-o', por assim dizer, no meu curso de Direito.

Saudações,

Rui
INADIÁVEIS OPÇÕES

A ignorância é muito atrevida e prega-nos as mais lamentáveis partidas.

Ontem, entontecido pela canícula que se fazia sentir, dirigi-me ao blogue social-democrata Opções-Inadiáveis, e manifestei algumas dúvidas quanto à coerência de atribuir um nome a um blogue inspirado por Francisco Sá Carneiro (como se vê pela citação que essa página utiliza em epígrafe), de um movimento que cindiu o PSD contra… o dito Francisco Sá Carneiro.
Erro meu, como bem me fez ver F. de R.-C. que, com um certo desdém aristocrático, me remeteu para uma bela ‘posta’ publicada já sobre o assunto, em resposta a uma dúvida semelhante do O Intermitente. Pelo caminho, aproveitou para me instruir sobre as relações ideológicas que existem entre o liberalismo e a social-democracia, enviando-me, com magnânime generosidade, para outra ‘posta’, excelentíssima, à qual deu o singelo nome de «Onde se estabelece jurisprudência sobre a relação entre liberalismo e social-democracia».

Sobre as «Opções-Inadiáveis» (as que cindiram o PSD e não as bloguistícas), esclarece-me F. de R.-C. que «os afrontamentos não tiveram lugar sobre o Programa do Partido, mas sim sobre estratégia». Pensava eu, erradamente, logo se vê, que aquele tinha sido o nome dado a um grupo de deputados e dirigentes do PSD que se manifestaram contra a «estratégia» seguida por Francisco Sá Carneiro, ao ponto deste se ter demitido da liderança do partido, para o obrigar a fazer uma escolha e, consequentemente, uma ruptura com esses dirigentes. Na altura, falou-se até na proximidade, nunca confirmada, de Francisco Pinto Balsemão a esse grupo, o que teria justificado algum distanciamento entre os dois. O que é facto é que foi necessário o afastamento das pessoas envolvidas nas «Opções Inadiáveis», para que Sá Carneiro pudesse regressar à liderança do PSD e conseguir impor a coligação eleitoral com o CDS e o PPM, com o objectivo de afastar a esquerda do poder e entregá-lo à Direita, como bem notou Vasco Pulido Valente, há já alguns anos, no nº 1 da revista dominical do «Público», num artigo sobre o fundador do PSD.
Isto pensava eu, e julgava até ter votado, ao tempo, na AD, por alguns destes motivos. Sempre me pareceu que Francisco Sá Carneiro não era homem para gostar de águas turvas e de meias tintas, e que preferia romper com todo o PSD, se preciso fosse, do que tentar conciliar o inconciliável. Daí, sempre o ter visto como um personagem político shakespeareano, de gestos largos e bruscos, carismático e aglotinador, que exigia decisões firmes e posições claras aos que o acompanhavam. Ao que parece, depois de ter lido F. de R.-C., estava enganado. E fiquei a saber que tudo não passou de uma desavença sobre «estratégia» que deixou intocável o «Programa» (com maiúscula) do Partido. Ainda bem.

Quanto à esclarecida «jurisprudência» estabelecida por F. de R.-C. «sobre a relação entre liberalismo e social-democracia», confesso que, infelizmente, não consegui vislumbrar o alcance da sentença do nosso iurisprudente. Ainda assim, deu para entender que existe uma «tradição intelectual» que infirma o PSD, que não se limita à pálida dicotomia liberalismo-socialismo. Nem tão pouco se pense que essa tradição se queda equidistante entre aquelas duas matrizes ideológicas. Pelo que me informa F. de R.- C. a social-democracia representa «os valores da democracia, da justiça social, da solidariedade e do respeito pela pessoa humana». Perfeito.

Eu pensava, erradamente, logo se vê, que a social-democracia tinha sido uma opção revisionista do marxismo, originária na Alemanha nos idos de 1863 e afirmada no ano seguinte na reunião londrina da Primeira Internacional, pelo impulso dado por Ferdinand Lassalle. Julgava também, que Eduard Bernstein não tinha sido estranho à evolução desta modalidade de socialismo, claramente não-marxista, mas socialista, de todo em todo. No século XX, era minha convicção que a social-democracia se tinha afirmado como «doutrina de governo» de alguns países da Europa Ocidental e Central, executava por Partidos Socialistas e excepcionalmente Social-Democratas. Economicamente distantes de Marx, mas próximos de Keynes e dos seus herdeiros, o que significou uma opção por políticas intervencionistas, que o liberalismo repudia desde sempre.
Eu julgava, também, que o PPD tinha tido, na sua origem, um problema de filiação internacional, já que não lhe convinham as Internacionais Democrata-Cristã, Liberal e Conservadora, nem lhe era fácil ingressar na Internacional Socialista (embora tenha tentado), onde Mário Soares já tinha assentado arraiais, razão, pela qual, teria mudado o nome do partido. E via o PSD, pelo menos desde o consulado do Prof. Cavaco, já que Sá Carneiro não teve tempo de governo suficiente para que se pudessem tirar conclusões, como um partido orientado para o exercício pragmático do poder, onde se detectam alguns bons princípios de livre-iniciativa e de mercado aberto. Não deixa, porém, de ser uma das duas traves mestras (a outra é o PS) do nosso aparelho de Estado, com tudo o que de negativo isso representa, ao fim de tantos anos de exercício ininterrupto dos seus múltiplos poderes. Erro meu, uma vez mais, já que, como bem sentencia F. de R.-C. «a praxis do PSD continua a ser inconformista, empreendedora, inovante, pragmática e reformista». Excelente.

Por fim, espero só não me enganar se afirmar que a «jurisprudência» que invoca F. de R.-C. não é a dos nossos tribunais (Deus nos livre!), mas aqueloutra a que se referia Ulpianus: «Iuris prudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque iniusti scientia».
Também sobre isto há-de F. de R.-C. ter uma 'posta' para me remeter.

sábado, agosto 09, 2003

TERCEIRO MUNDO - PARTE III

Hoje, no noticiário das 11.00 h, a TSF dava nota da quase interrupção da circulação na A1, provocada por uma 'bicha' formada pelas obras na zona de Pombal-Tomar. Segundo a TSF, a 'bicha' tinha cerca de dez quilómetros e demorava mais de duas horas a ser percorrida. A BRISA, que se saiba, continua sem informar os utentes da A1 das obras em curso. Não lhes pede desculpas, nem diminui o valor das portagens em virtude da demora e dos transtornos causados. O Estado nada faz. A TSF, empresa privada, presta um serviço público que, obviamente, tem um grau muito reduzido de eficácia.
Palavras, para quê?
OPÇÕES-INADIÁVEIS

O nosso blog obedece, inequivocamente, a uma orientação liberal, por isso, não temos pela social-democracia uma especial ternura. Ela é, historica, doutrinária e culturalmente, uma descendente do socialismo oitocentista, adepta do keynesianismo e do mais puro intervencionismo de Estado, ainda que (admitimo-lo) tenha feito alguns progressos rumo ao mercado livre nas últimas duas décadas do século XX, nalguns países da Europa.
Contudo, sabemos apreciar quem defende com inteligência as suas convicções, como é o caso doOpções-Inadiáveis, um blogue incontornável na nossa blogosfera.
Há, porém, uma dúvida que nos assalta, tendo em consideração o nome do blogue e a admiração (merecida e justa) por Francisco Sá Carneiro, o carismático fundador do PPD, mais tarde (em 1975), PSD. Se bem me recordo, as Opções Inadiáveis foram um 'movimento' que cindiu em dois o grupo parlamentar do PSD, nos idos de 1977 ou 1978, em ruptura com Sá Carneiro. Patrocionado, de resto, por gente, como Magalhães Mota, Guilherme de Oliveira Martins e Sousa Franco, que, mais tarde, constituiu a ASDI (Associação Social Democrata Independente) e concorreu em listas conjuntas com o PS (FRS), contra a AD da Sá Carneiro, Freitas e Ribeiro Telles. Alguns desses dissidentes acabariam, desfeita a ASDI, por militar no PS e foram até membros de alguns dos seus governos e seus deputados.
É possível que existam aqui algumas imprecisões (já lá vão alguns anos e a minha cultura social-democrata não é vasta), mas julgo que, no essencial, não andarei longe da verdade. Talvez o Opcões-Inadiáveis, que aqui felicito, me possa esclarecer.
NOITES ESCALDANTES

Não me lembro de um verão tão quente como aquele em que estamos.

Ontem, às 21.45, no Porto, onde a temperatura mais elevada raramente ultrapassa os 30º, durante o dia e, à  noite, os 24º, 25º, estavam 41º. Quarenta e um tórridos graus celsius, medidos na Rotunda da Boavista, dentro do meu carro que, felizmente, tem um ar condicionado a funcionar devidamente.

São várias as propriedades atribuidas ao tempo quente. Os Antigos achavam-no potenciador de calamidades e desgraças, e não aconselhavam grandes empreendimentos com a temperatura a exceder os limites da tolerância. O calor é propenso à  diversão, ao despreendimento, à  distensão. À praia, ao campo fresco, às touradas, à caça, muita caça, e à  afirmação dos sentidos mais intensos, do erotismo, da virilidade.

Quem se aventura a tomar decisões em dias escaldantes, pode queimar-se. Que o diga William Hurt, no primeiro e fantástico filme de Lawrence Kasdan, «Noites Escaldantes» («Body Heat», já lançado em DVD), onde se estreou, também, essa musa da 7ª arte (que a doença, infelizmente, desfigurou), chamada Katleen Turner. O filme é uma homenagem aos 'filmes negros' americanos dos anos quarenta, a Bogart e a Bacall, embora, em minha opinião, ultrapasse em muito as suas melhores referências inspiradoras. O ambiente é denso, asfixiante, húmido. Paira no ar o desejo, a vontade, a obsessão pelo corpo e o instinto de posse. Nos momentos de maior ardor carnal, sente-se o bafo quente de Katleen Turner e ouve-se a sua voz rouca a sussurar-nos aos ouvidos. São inesquecí­veis muitas cenas, embora não duvide que o primeiro encontro entre os dois protagonistas principais, num bar, à noite, com Katleen Turner envergando um justí­ssimo vestido vermelho - a côr do fogo - ficará, para sempre, no pico mais alto da (minha) história do cinema. Inadvertidamente, Hurt, um jovem advogado, não escutou os conselhos que o seu amigo polí­cia negro lhe dá no começo do filme: o calor não é bom conselheiro e só pode trazer dissabores. Pouco antes de tudo começar a ruir, a explodir em sentido literal, ainda tem tempo de perguntar à  'imagem' da sua amante: «hey lady, do you wanna fuck?»
Não contarei o fim do filme, embora não seja difí­cil adivinhar que Hurt irá queimar as asas no fogo de Katleen Turner. O calor não refresca as ideias, é mau conselheiro.
Ainda assim, se houver por aí alguma que se lhe assemelhe, por favor, contacte este blog antes que os termómetros comecem a baixar.

sexta-feira, agosto 08, 2003

TERCEIRO MUNDO -PARTE II

Hoje (dia 7), na habitual informação de trânsito do noticiário das 12.00, a TSF noticiava a existência de uma imensa 'bicha' de trânsito parado, na A1, na zona de Tomar, provocada por obras de reparação da estrada.
As mesmas obras, no mesmo sí­tio, a originar o mesmo problema, que já transtornou a vida a milhares de utentes de um serviço pago e efectivamente não prestado: a circulação rápida, sem problemas previsíveis, numa estrada que liga Lisboa ao Porto.
A concessionária, a BRISA, continua sem avisar os utentes dessas obras, a uma distância que lhes permitisse optar por continuarem aí­ a sua viagem, ou sairem para a estrada nacional. A BRISA não quer perder clientes, nem receita. Em rigor, está-se 'nas tintas' para os seus clientes. O Estado não adverte a empresa. Multá-la seria uma piada de mau gosto.
Parece que esta tortura já dura há uma semana. Não se sabe por quanto tempo mais se irá prolongar.
Ninguém pede desculpa, ninguém fiscaliza, ninguém é responsável. E ninguém se indigna ou protesta.
Portugal está, cada vez mais, um paí­s de gente 'mansa'. Que horror!

quinta-feira, agosto 07, 2003

DOIS EXTRAORDINÁRIOS FILMES

Adquiri hoje em DVD, essa espantosa descoberta da humanidade, dois filmes que há muito perseguia em vão: «Bem Vindo Mr. Chance» (1979), de Hal Ashby e «O Ano do Dragão» (1985), de Michael Cimino. Ambos são dois filmes extraordinários que, por razões distintas e opostas, fizeram parte importante da minha juventude.

O primeiro tem, desde logo, a marca importante de ter sido o último filme de Peter Sellers, um actor de múltiplos talentos quase sempre desaproveitados, que morreria pouco tempo depois vitimado por um cancro. A decadância fí­sica é bem visí­vel no filme, embora Sellers seja superior ao melhor de si próprio e nos consiga fazer esquecer a sua condição humana. Não tenho dúvidas em afirmar que este foi, de longe, o seu melhor desempenho no cinema, para o qual, de acordo com a lenda, ele próprio se ofereceu. O filme é um produto típico do «liberalismo» (soit disant) norte-americano e hollywoodesco, e consiste numa notável sátira ao sistema polí­tico dos Estados Unidos: um deficiente mental, cuja única actividade consiste na jardinagem doméstica, chega, por uma série de acasos e circunstâncias, a Presidente dos EUA, com o prestí­gio de um génio humilde e discreto. O filme foi um sucesso na Europa, que viu assim confirmada a sua tontice sombranceira de considerar os americanos do norte umas crianças e a sua Pátria uma grotesca infantilidade. É claro que só um filme muito, muito bom nos poderia fazer engolir isto com um sorriso. E, também, o facto, que há-de ter passado desapercebido a Ashbby, de ser Jimmy Carter, à época, o presidente em funções...

Pelo contrário, «O Ano do Dragão» é uma epopeia patriótica e uma declaração de amor aos EUA, com tudo de bom e de mau que nesse imenso Paí­s coexiste. Feita por um polí­cia de ascendência polaca, o Capitão Stanley White (Mickey Rourke, no único 'papel' digno desse nome em toda a sua carreira). O filme é um pouco desigual, fruto da falta de recursos postos à  disposição do realizador, que é, nem mais nem menos, que Michael Cimino, realizador do genial «O Caçador» e, nessa época, jovem esperança dos estúdios de Hollywood. Cimino ficaria fatalmente condenado com «Heaven's Gate», um dos maiores fracassos de bilheteira de sempre, a nunca mais ter orçamentos confortáveis à sua disposição. «O Ano do Dragão» é, ainda assim, uma obra genial, que conta a história de um capitão da polí­cia com perto de cinquenta anos, antigo herói do Vietname, que nunca encontrou verdadeiramente o seu papel no 'post war'. Trata-se, em minha opinião, da 'continuação' de «O Caçador», como se Stanley White incorporasse, num homem só, o carisma e a determinação de Michael (Robert de Niro), a insanidade de Nick (Christopher Walken) e a fragilidade de Steven (John Savage), também eles três jovens polacos que prestaram a sua dá­diva de sangue no Vietname. Esta é a mais bela dimensão do filme.

Se conhecem estes dois extraordinários filmes, nada mais tenho a acrescentar. Se nunca os viram, recomendo que não percam tempo.

quarta-feira, agosto 06, 2003

AS THEIAS QUE O IMPÉRIO TECE

Durão Barroso já assegurou a sua inesgotável confiança política no Ministro Amilcar Theias.

O Primeiro-Ministro aproveitou, também, para confirmar idênticos sentimentos em relação a Figueiredo Lopes.

Amilcar Theias já desfez o equívoco que alguma alma mal intencionada gerou, e proclamou o seu irredutível amor aos ex-combatentes do Ultramar e ao direito constitucional de armazenarem as munições que entenderem nas suas habitações.

Os dois neurónios de Vasco Lourenço afirmaram em uníssono que achavam «estapafúrdias, PÁ!» as declarações do Ministro do Ambiente. PÁ! PUM!

Em suma, em Portugal quando o calor aperta, o disparate desperta.
TERCEIRO MUNDO

A necessidade obrigou-me, hoje, a deslocar-me a Lisboa.
Para um percurso de automóvel de cerca de 230 km calculei, com uma razoável margem de segurança, três horas de viagem na A1.
Durante a primeira hora tudo correu bem e, a uma média de cento e cinquenta, cento e sessenta km/h, percorri cerca de cento e trinta quilómetros. De repente, a seguir a uma curva, sem qualquer aviso prévio, o trânsito parou. Estancou. E, durante uma hora e meia, percorri, com outras centenas de exasperados automobilistas, sete longos e penosos quilómetros.
A um quilómetro e trezentos metros do início da obra na auto-estrada que originara a interminável bicha, lá estava uma placa a avisar os condutores para se chegarem à esquerda e comunicando-lhes da dita. Tarde e a más horas, para quem eventualmente preferisse sair a tempo da auto-estrada e percorrer a parte correspondente ao troço condicionado pela estrada nacional. No fim do desvio, o trânsito recuperou a sua marcha normal. Por parte da BRISA, nem uma placa a pedir desculpa pelo incómodo.
Eu tinha de estar em Lisboa impreterivelmente às 14.00 h. Tinha uma escritura para assinar, um notário com horas marcadas e pessoas à  minha espera. Para conseguir chegar com um mí­nimo de atraso possí­vel, cometi a irresponsabilidade de acelerar para uma velocidade média de cento e oitenta, cento e noventa km/h. Felizmente, cheguei no «quarto hora académico» de tolerância, sem suceder nada de grave. Mas mais uns minutos e tudo ficaria adiado, com sérios prejuí­zos para todos os envolvidos.
Comentando o sucedido com um dos presentes no acto notarial, retorquiu-me, quase em forma de reprimenda, que devemos ser previdentes nestas ocasiões e preparar tudo com muita antecedência.
Ora, eu penso que esta opinião está profundamente errada. Creio mesmo que ela indicia algo de profundo no carácter português - o nosso «fado», o fatalismo trágico da impotância que há muito nos acompanha - e que é substancialmente responsável pelo insucesso das ideias e dos princípios de liberalismo na sociedade portuguesa, que recomenda à  máxima liberdade, a máxima responsabilidade. É, também, uma clara emanação de uma atitude de irresponsasbilidade e de exigência, sobretudo porque está em causa um serviço pago e indevidamente prestado.

Dito isto noutros termos, a BRISA é uma empresa concessionária de um importantí­ssimo serviço público: a administração de parte substancial da rede nacional de auto-estradas. Do seu devido ou indevido funcionamento dependem os interesses de milhares de pessoas, mesmo até as suas próprias vidas em sentido fí­sico. Como é óbvio, não está em causa o direito (a obrigação) da empresa promover a boa manutenção das estradas que gere. O que se não admite á que, numa situação como a descrita, a BRISA não avise em tempo oportuno os seus utentes das obras na estrada (facto, pelo qual, ela é responsável) e da consequente demora do tráfego, ou, tão-pouco, uma satisfação.
Obviamente, que a BRISA não quis perder clientes, nem receita. Por isso, sacrificando os interesses dos seus utentes, pondo até em risco as suas vidas, nada lhes comunicou. Não lhes pediu, sequer, as devidas desculpas. Em linguagem corrente, a BRISA, empresa concessionária da única auto-estrada que liga o Porto a Lisboa, quer que os seus clientes se lixem!
A culminar esta cultura de irresponsabilidade está, naturalmente, o Estado, que devia fiscalizar o desempenho da sua concessionária e, pelo menos em casos como este, não o faz. Se o utente quiser reclamar, fá-lo a quem? A que serviço se dirige?

A culpa foi, naturalmente, como bem me explicaram, minha. Da próxima vez, em vez de confiar nos serviços pagos (e muito bem pagos) da BRISA, aplicarei a receita que hoje me foi recomendada e desloco-me de véspera à  capital. Na verdade, uma extensão auto-estrada de duzentos e trinta quilómetros é um espaço de aventura e imprevisibilidade, do qual nos devemos precatar.

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